domingo, 21 de março de 2010

Um velório incomum

Havia me mudado para lá há poucos dias. “As ruas são entes viventes”, como disse João do Rio. Sendo assim, a Visconde do Rio Branco sofre de um tipo de transtorno bipolar. À noite, o silêncio e calmaria escondem o movimento frenético e enlouquecedor do dia que, não poucas vezes, costuma fazer vítimas fatais e juntar personagens curiosos.

Aquelas três mulheres, na esquina do prédio onde moro, ao redor daquele corpo caído não foi lá uma grande recepção. Mesmo constrangido me aproximei. No entanto, optei por uma distância na qual eu não fosse facilmente notado. Não quis interromper aquele momento de dor. Já próximo e para minha surpresa, estavam calmas, mas muito solenes. Pude finalmente ouvi-las.

Uma senhora baixinha e gorducha, que era chamada pelas outras de Mazé, com a voz pesada falava da sua experiência com o defunto. O conhecera há três anos quando ele começou frequentar a rua e ficar pelos cantos. Nos primeiros dias, muito desconfiada, D. Mazé o ignorava. No entanto, percebendo a inofensividade do recém chegado, passou a oferecer-lhe comida. “No começo eu dava o que sobrava do almoço, mas depois eu até cozinhava algumas coisas pra ele. Ele ficava tão feliz!”

A mais jovem entre elas, passava boa parte do tempo de cócoras como que querendo acarinhar o corpo, mas tinha receio. O receio talvez se devesse ao fato de que corpos inertes costumam mexer com a nossa frágil segurança nisso que damos o nome de vida. Eles nos mostram o quanto nós, seres que respiramos, somos frágeis e vulneráveis. “Eu até me sentia segura com a presença dele quando eu vinha tarde da noite. Mesmo sem nunca termos nos falado muito.” A essa altura eu já havia sido notado pela jovem, mas fui ignorado. “Como ninguém sabia o nome dele, a gente o chamava lá em casa de Chico. A rua todo passou a chamá-lo assim. Ele nunca reclamou, pelo contrário, até atendia. Era tão resignado!” Achei ter visto um tímido sorriso em seus lábios.

Enquanto a terceira mulher falava fui me aproximando. Ela morava sozinha desde que resolveu deixar o marido há dois anos. Chico sempre lhe fazia companhia. Às vezes por horas. No entanto, nunca soube nada a seu respeito: de onde veio, se veio parar aqui sozinho, se alguém o deixou, se sentia saudades do passado. Não sabia nem mesmo a sua idade. “Nunca tive coragem de dividir o teto com ele. Se estivesse comigo, talvez isso não tivesse acontecido.”

Num dado momento, notei que as três me olhavam. Quase morri de vergonha. Eu era um intruso naquela reunião familiar. Na verdade um velório a céu aberto. Dei boa noite e fui logo me desculpando. Uma delas, a senhora gorducha, me reconheceu. “Você não é moço que se mudou no final de semana?” Consenti com a cabeça. “Não teve tempo de conhecer o Chico, né?” Procurei saber o que fariam com o corpo. Logo começaria a cheirar mal, já que o atropelamento se deu no fim da tarde e a noite já avançava. “Não conheço nenhum cemitério para cachorros na cidade. Mesmo que tivesse, seria muito caro. Podemos enterrá-lo no meu jardim. É grande e bem cuidado.” Fui pra minha casa. Não quis ver a remoção do corpo. A morte ainda me amedronta.